segunda-feira, novembro 06, 2006

Ensaio sobre a cegueira

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Depois que vi a coletânea com mais de 2.500 exageros, redundâncias, impropriedades e clichês que o Sérgio Barcellos Ximenes disponibilizou no extinto Blog do Romance ("um blog sobre a técnica do romance literário, do ponto de vista do leitor"), não consigo deixar de procurar esses fenômenos lingüísticos em cada texto que leio.

No Ensaio sobre a cegueira (Companhia das Letras, 1995), de José Saramago, percebi que, a despeito de sua capacidade descritiva e imaginativa lhe conferir criar expressões e cenas muito originais em vários momentos da obra, o Nobel tem sempre à mão (opa!) um lugar comum, uma frase feita, um já-dito. Embora ele confesse que “as frases feitas são assim, não têm sensibilidade para as mil subtilezas do sentido” (p.234), sua escrita tem forte apoio no uso de chavões lingüísticos, provérbios, ditados, e expressões cristalizadas --- citadas literalmente ou desdobradas.

Alisto abaixo o que a paciência me permitiu grifar durante a leitura:

“...Do mal o menos...” (p.18); “...se é certo que a ocasião nem sempre faz o ladrão...” (p.25); “...a isto chama o vulgo fazer das tripas coração...” (p.41); [o fajuto clichê petista] "...não valia a pena trocar o certo pelo duvidoso" (p.49) “...estremeceu de surpresa...” (p.75); “...para pouca saúde mais vale nenhuma...” (p.90); “...candeia que vai adiante alumia duas vezes...” (p.90); “...primeiro come-se, depois é que se lava a panela...” (p.103); “...quem parte e reparte e não fica com a melhor parte, ou é tolo, ou no partir não tem arte...” (p.103); “...quem não arrisca não petisca...” (p.106); “...diante das adversidades (...) é que se conhecem os amigos.” (p.107); “...cada qual com seu igual...” (p.109); “...as lágrimas correndo simplesmente, como de uma fonte.” (p.121); “Nãobem que sempre dure, nem mal que ature...” (p.123); “...quem paga adiantado, sempre acaba mal servido,...” (p.151); “...dormiam a sono solto...” (p.151); “...saúde para dar e vender...” (p.160); “...doa a quem doer, factos são factos...” (p.163); “...fosse o justo a pagar pelo pecador...” (p.163); “...sem nem piedade...” (p.166); “...as aparências são enganadoras...” (p.170); “...pousou-se no seu peito com a leveza de um pássaro...” (p.172); “...quem tiver de morrer morrerá, a morte escolhe sem avisar...” (p.175); “...o diabo nem sempre está atrás da porta...” (p.193); “...não poderiam nem com uma gata pelo rabo...” (p.196); “...começamos a dar o dito por não dito...” (p.197); “...assim como o hábito não faz o monge, o ceptro não faz o rei...” (p.204); “...nãoregra que não tenha a sua excepção...” (p.205); “...não esqueçamos que tudo na vida é relativo...” (p.206); “...ela é a que deita fogo à pira, não a que deve morrer...” (p.206); “Deus dá a nuvem conforme a sede.” (p.225); “...há é que ter paciência, dar tempo ao tempo...” (p.226); “...como se costuma dizer, a fruta está muito escolhida...” (p.231); “...dêem tempo ao tempo e ele se encarrega de resolver...” (p.232); “...um rei com olhos numa terra de cegos...” (p.245); “...a experiência é realmente a mestra da vida...” (p.250); “...olhos que não vêem, coração que não sente...” (p.250); “E como uma desgraça nunca vem ...” (p.253); “...veio abaixo num sopro, como um castelo de cartas...” (p.255); “...assim é a vida, quem não tem cão caça com gato...” (p.268); “...não é na natureza que algumas vezes nem tudo se perde e algo se aproveita.” (p.273); “...com a ajuda dos santos, que sendo para baixo acodem todos...” (p.286); “O puxador da porta é a mão estendida de uma casa...” (p.289); “...o fio que nos une...” (p.290); “...é preciso esperar, dar tempo ao tempo...” (p.303)

Não posso afirmar com certeza se em todos os casos as frases aparecem por descuido, por preguiça do autor em recriar artisticamente expressões desgastadas, ou se é algo feito de forma proposital. Seja como for, por descuido ou de cabeça pensada, parece óbvio que esse é um dos recursos que garantem a popularidade da prosa do best-seller português.

9 comentários:

Anônimo disse...

Hahahaha, nem o "quem arrisca não petisca" escapou. Olha, acho que eu também vou virar escritor de romances!

Anônimo disse...

ahhh.. Ves se ves..
completamente entendido o tempo q vc levou pra escrever este ensaio.. 8 páginas só listando né?! humm.. to “começando a dar o dito por não dito”
Concordo com Thales, e devo informar q meu romance estará pronto no final desse mês!

Anônimo disse...

Como sempre escrevendo muito bem!
Gostei da percepçao

Anônimo disse...

bom, a impressão q tive da leitura dos livros de Saramago é que geralmente esses provérbios são usados numa clave irônica. ou então, para dar um tom de "causo", "contação" às vozes narrativas. de qualquer forma, quando reler algum romance dele, vou prestar atenção nisso, porque pode ser uma derrapada no medíocre, né?

Márcio S. Sobrinho disse...

thales e 'pituca', se quiserem eu mando a lista com os 2.500, vai lhes poupar trabalho, até porque, o objetivo do clichê é justamente esse! :)

obrigado, paloma. :*

cris, :) é o que eu disse, não tenho certeza se em todos os casos; vá lá que em alguns haja esse intuito, de criar a atmosfera de 'causo', ou um outro significado, mas, me parece que só mesmo a preguiça mental explica o narrador dizer: "dormir a sono solto", "lágrimas correndo como de uma fonte", "com a leveza de um pássaro", esse clichê de virada de ano: "saúde pra dar e vender", "sem dó nem piedade", "veio abaixo como um castelo de cartas", etc, etc... :(

Anônimo disse...

Eu não havia parado para pensar nos clichês... Interessante como as idéias, da forma como são, surpreendentes, são unidas por expressões corriqueiras. Na música, em especial no samba e no choro, ritmos e composições harmônicas extremamente complexas, são regidas por clichês. O violão é tocado magistralmente e ali são reproduzidos "clichês de baixo". No cavaquinho, bandolim e outros instrumentos as contruções também são corriqueiras, não deixando portanto, de serem complexas. Voltando à escrita, outro que trouxe a linguagem popular cheia de verbetes e tranformando-a com suas idéias em verdadeiros encantos literários foi Guimarães Rosa. A idéia de ressaltar os clichês em obras grandiosas nos mostra que é preciso de simplicidade para que as idéias mais belas transpareçam. Grande idéia, Márcio.

Márcio S. Sobrinho disse...

olá, Nilo, obrigado pela visita. o exemplo de Guimarães Rosa "vem bem a calhar", pq em seus textos se percebe o tremendo cuidado que ele tinha e o esforço que fazia para recriar expressões mil vezes repetidas, querendo dizer tudo de uma forma nova -- ele era um estilista tão magistral que conseguia esse efeito em muitos casos simplesmente alterando a sintaxe padrão da língua! Agora, nos casos que alistei, não vi nada parecido em Saramago. Clichê -- principalmente na quantidade apontada, e a menos que cumpra uma função diferente da de preencher um espaço em branco -- não é traço de simplicidade, mas de mediocridade: um clichê é uma frase feita que qualquer um poderia ter transcrito, não há nenhum processo literário no ato de colar um clichê no papel.

Anônimo disse...

Acredito que justamente a genilidade de Saramago resida do fato dele associar uma narrativa acessível à uma ideia surreal e não menos fantástica, acredito que nada deixa a sobra as ideias dele.

Anônimo disse...

Kakakakaka
Ainda não li o meu "Ensaio sobre a cegueira" que ganhei de aniversário, em novembro passado. Bom saber dessa sua análise. Que está "de torar!" Saramago, como vc sabe, fez parte de minha vida por um semestre inteiro, mas essa parte não me foi apresentada...hehehehehe.

abs