Os Pedaços de Mim.
por Robério Maracajá
Passa das duas da madrugada. A casa é silêncio e eu sou silêncio. Lá fora, é quase silêncio, não piassem algumas aves noturnas, não passasse o guarda noturno e algum carro madrugador. Sorteio um livro na estante, leio algumas páginas bastantes para o autor dizer que eu não sou eu. Sou, apenas, uma parte. Para quem já estava só, fico mais sozinho, assim sem mim mesmo, sem o restante de mim. A ser verdade, onde andarão minhas outras partes, o que serão os pedaços restantes? Quem serão os outros eus?
Diluído assim, fecho o livro com a pressa de quem tranca uma gaiola para que não fujam os outros pássaros. Pois nessa dissolução, desfaço-me em asas, penas, vôos, uma dispersão que me faz perder. A certeza de estar incompleto arrebanha-me todas as dúvidas. Agora sou as corujas e os morcegos que vagam no escuro do quintal. As flores e os frutos das árvores, os velhos troncos, até as raízes. Sou o chão, as folhas secas e, amanhecendo o dia, o pio de todos os pássaros.
Serei parte do vendedor de cajus que passa, da mulher que leva um menino à escola, até do menino sou uma nesga, um fiapo. E um pedaço de voz, o solfejo de uma música e a boca, apenas a boca de um rosto no espelho. Não imagino qual seja meu o desenho na asa da borboleta, a pétala que corre na água suja do meio-fio. A fumaça do cigarro parece desenhar o esboço dos meus dedos. E a pequena aranha que tece a fina teia, no recanto da porta, me faz teia e aranha.
O pior mesmo são as minhas distâncias. Então, os meus infinitos. Estou perdido na noite sem horizonte. Assuntado na noite escura. Talvez na mão de um morto, ou num ato de amor inconfesso. Moro em cada pensamento solto, nas agonias, nas lágrimas, nos risos, no ódio. Agonizo e sou parido, escondo-me e liberto-me. Sou preto, branco, amarelo, cafuzo. Sou gente, bicho, coisa. Água e fogo, lago e rio. Sou parte.
Inútil tentar reunir as minhas partes, que seriam pedaços de mais outros. Fico com medo de mim, colcha de retalhos. Assusto-me em arco-íris. Desventuro-me na corredeira de um rio. Envieso-me em becos sem saída, fecho-me em portas, perco-me em raios de luz, apodreço, canto, danço, vou e volto. Estou até em ser nada. Sou um pedaço, uma metade, um meio de caminho. E as minhas vontades, os meus sonhos, os meus amores, os meus ódios, não me fazem, nem me pertencem, só um pouco.
Quando estou só, não estou sozinho. É aconchegante dividir a solidão. Dói não ser o amor totalmente meu amor e doem mais as minhas mãos e os meus gestos, que podem trazer vazios de outras mãos e maldades de outros gestos.
(Jornal da Paraíba, 3 de dezembro de 1997)
Foto: Robério visitando grupo de ciganos.
Arte de Emerson Saraiva
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