sábado, novembro 25, 2006

Os Pedaços de Mim.
por Robério Maracajá

Passa das duas da madrugada. A casa é silêncio e eu sou silêncio. fora, é quase silêncio, não piassem algumas aves noturnas, não passasse o guarda noturno e algum carro madrugador. Sorteio um livro na estante, leio algumas páginas bastantes para o autor dizer que eu não sou eu. Sou, apenas, uma parte. Para quem estava , fico mais sozinho, assim sem mim mesmo, sem o restante de mim. A ser verdade, onde andarão minhas outras partes, o que serão os pedaços restantes? Quem serão os outros eus?

Diluído assim, fecho o livro com a pressa de quem tranca uma gaiola para que não fujam os outros pássaros. Pois nessa dissolução, desfaço-me em asas, penas, vôos, uma dispersão que me faz perder. A certeza de estar incompleto arrebanha-me todas as dúvidas. Agora sou as corujas e os morcegos que vagam no escuro do quintal. As flores e os frutos das árvores, os velhos troncos, até as raízes. Sou o chão, as folhas secas e, amanhecendo o dia, o pio de todos os pássaros.

Serei parte do vendedor de cajus que passa, da mulher que leva um menino à escola, até do menino sou uma nesga, um fiapo. E um pedaço de voz, o solfejo de uma música e a boca, apenas a boca de um rosto no espelho. Não imagino qual seja meu o desenho na asa da borboleta, a pétala que corre na água suja do meio-fio. A fumaça do cigarro parece desenhar o esboço dos meus dedos. E a pequena aranha que tece a fina teia, no recanto da porta, me faz teia e aranha.

O pior mesmo são as minhas distâncias. Então, os meus infinitos. Estou perdido na noite sem horizonte. Assuntado na noite escura. Talvez na mão de um morto, ou num ato de amor inconfesso. Moro em cada pensamento solto, nas agonias, nas lágrimas, nos risos, no ódio. Agonizo e sou parido, escondo-me e liberto-me. Sou preto, branco, amarelo, cafuzo. Sou gente, bicho, coisa. Água e fogo, lago e rio. Sou parte.

Inútil tentar reunir as minhas partes, que seriam pedaços de mais outros. Fico com medo de mim, colcha de retalhos. Assusto-me em arco-íris. Desventuro-me na corredeira de um rio. Envieso-me em becos sem saída, fecho-me em portas, perco-me em raios de luz, apodreço, canto, danço, vou e volto. Estou até em ser nada. Sou um pedaço, uma metade, um meio de caminho. E as minhas vontades, os meus sonhos, os meus amores, os meus ódios, não me fazem, nem me pertencem, um pouco.

Quando estou , não estou sozinho. É aconchegante dividir a solidão. Dói não ser o amor totalmente meu amor e doem mais as minhas mãos e os meus gestos, que podem trazer vazios de outras mãos e maldades de outros gestos.

(Jornal da Paraíba, 3 de dezembro de 1997)
Foto: Robério visitando grupo de ciganos.
Arte de Emerson Saraiva

sexta-feira, novembro 24, 2006

Páginas Esquecidas

alguns dias estive com minha colega Paula Theotonio na casa de Eneida Agra, em busca de material para uma matéria sobre o seu marido, o cronista Robério Maracajá (1929-2000). A matéria veio à luz, mas a revista onde seria publicada, por contra-tempos e questões técnicas, foi abortada...

Bem, embora reclamasse de dor de cabeça, Eneida nos recebeu de forma muito agradável. Na conversa que durou uma hora e meia, contou como Robério vivia e escrevia, e num timbre que misturava orgulho e saudade, leu alguns trechos das crônicas que ia puxando dos envelopes.

Eneida guarda pilhas com pacotes das crônicas de Robério. Milhares delas, creio. Diz não saber o que fazer de tudo aquilo -- na hora penso que achei um bom tema para minha monografia. Em meio aos montes com recortes de jornal, e algumas folhas inéditas, está espalhado o romance que ele não concluiu e o livro de crônicas que nunca chegou a publicar.

Depois de perguntar de quem éramos filhos, anotar nosso endereço, e pedir nossa assinatura num canto de página, ela nos emprestou 75 crônicas, algumas fotos, uma entrevista, o discurso que Robério proferiu na Academia Campinense de Letras, e mais duas palestras.

Com o maior cuidado, fui no dia seguinte devolver o material. As crônicas de Robério -- ao menos as que pude ler, e amanhã devo postar uma delas aqui --, são extremamente bem escritas, e possuem um valor que as faz resistir ao tempo, à data de impressão do jornal. Ao invés de amarelarem nos envelopes, mereciam era uma boa edição em livro.

quinta-feira, novembro 16, 2006

Lançamento

Amanhã e sábado, Ronaldo Monte estará em Campina lançando seu primeiro romance, Memória do Fogo, publicado pela Objetiva. Ronaldo, 59, é autor de outros cinco livros, dois de crônica e textos curtos e três de poesia:

Café & Poesia
Rua 13 de Maio, 41 - Centro
Apresentação de Vitória Lima
Sexta-feira, 20:00h.

Livraria Cultura
Shopping Iguatemy
Apresentação de Astier Basílio
Sábado, 10:00h.

segunda-feira, novembro 13, 2006

Novos Links

Comentário Conservador -- "As idéias, em formato PodCast, de vários intelectuais liberais e conservadores do mundo, em especial dos pensadores brasileiros da atualidade".
Em seu favor: O blog já conta com duas participações de Olavo de Carvalho que (ainda não conferi porque estou sem placa de som, mas se forem qualquer coisa parecida com o que tem sido publicado pelo Garganta de Fogo) vocês têm o dever de ouvir! Vale a pena conferir também os livros indicados e a seção de downloads, onde se pode baixar a obra de Ortega y Gassett e a Poesia Completa de Antônio Machado, entre outras coisas boas. Contra: Nada.

sexta-feira, novembro 10, 2006

Nota de Leitura - Cartas Portuguesas

Ontem li as cinco Cartas Portuguesas, escritas pela freira Mariana Alcoforado, pelos idos de 1600. As cartas teriam sido dirigidas ao Sr. Cavalheiro De Chamilly, um oficial francês que servia em Portugal. O conteúdo? A súplica desesperada de uma mulher perdida [de amor].

Em
meio às incertezas do abandono, a sóror vai construindo todo um arrazoado acerca de seus sentimentos, dos sentimentos de seu amante, e dos fatos que envolvem essa relação interditada.
Descontando-se, como disse Pessoa, o caráter ridículo de todas as cartas desse tipo, aquilo que pode parecer apenas a expressão de uma profunda dor, de uma profunda dor de cotovelo... é na verdade um texto muito bem escrito, sem breguiçes sentimentais, que eu recomendaria a todos --- apaixonados ou desiludidos.

quinta-feira, novembro 09, 2006

Novos Links

Jornalismo Paraibano -- Como a FENAJ já indicou, eu não poderia demorar mais. Segundo a definição do criador, Jornalismo Paraibano é "canal para uma discussão franca, ampla e profunda sobre o Jornalismo na Paraíba, através de notícias, reportagens, crônicas, artigos, enquetes e entrevistas." Em seu favor: Apesar de recente, o blog é um inseto picando a mula dos arcaicos meios de comunicação da Paraíba. E o mais interessante é a forma como isso tem sido feito: há uma ou outra opinião do autor, aqui e acolá, perdidas; de modo geral, o que acontece é que ele tem procurado as pessoas certas pra falar sobre as questões que mais interessam, e incomodam. Contra: Nildo, junta umas moedas e paga um layout de respeito!

segunda-feira, novembro 06, 2006

Ensaio sobre a cegueira

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Depois que vi a coletânea com mais de 2.500 exageros, redundâncias, impropriedades e clichês que o Sérgio Barcellos Ximenes disponibilizou no extinto Blog do Romance ("um blog sobre a técnica do romance literário, do ponto de vista do leitor"), não consigo deixar de procurar esses fenômenos lingüísticos em cada texto que leio.

No Ensaio sobre a cegueira (Companhia das Letras, 1995), de José Saramago, percebi que, a despeito de sua capacidade descritiva e imaginativa lhe conferir criar expressões e cenas muito originais em vários momentos da obra, o Nobel tem sempre à mão (opa!) um lugar comum, uma frase feita, um já-dito. Embora ele confesse que “as frases feitas são assim, não têm sensibilidade para as mil subtilezas do sentido” (p.234), sua escrita tem forte apoio no uso de chavões lingüísticos, provérbios, ditados, e expressões cristalizadas --- citadas literalmente ou desdobradas.

Alisto abaixo o que a paciência me permitiu grifar durante a leitura:

“...Do mal o menos...” (p.18); “...se é certo que a ocasião nem sempre faz o ladrão...” (p.25); “...a isto chama o vulgo fazer das tripas coração...” (p.41); [o fajuto clichê petista] "...não valia a pena trocar o certo pelo duvidoso" (p.49) “...estremeceu de surpresa...” (p.75); “...para pouca saúde mais vale nenhuma...” (p.90); “...candeia que vai adiante alumia duas vezes...” (p.90); “...primeiro come-se, depois é que se lava a panela...” (p.103); “...quem parte e reparte e não fica com a melhor parte, ou é tolo, ou no partir não tem arte...” (p.103); “...quem não arrisca não petisca...” (p.106); “...diante das adversidades (...) é que se conhecem os amigos.” (p.107); “...cada qual com seu igual...” (p.109); “...as lágrimas correndo simplesmente, como de uma fonte.” (p.121); “Nãobem que sempre dure, nem mal que ature...” (p.123); “...quem paga adiantado, sempre acaba mal servido,...” (p.151); “...dormiam a sono solto...” (p.151); “...saúde para dar e vender...” (p.160); “...doa a quem doer, factos são factos...” (p.163); “...fosse o justo a pagar pelo pecador...” (p.163); “...sem nem piedade...” (p.166); “...as aparências são enganadoras...” (p.170); “...pousou-se no seu peito com a leveza de um pássaro...” (p.172); “...quem tiver de morrer morrerá, a morte escolhe sem avisar...” (p.175); “...o diabo nem sempre está atrás da porta...” (p.193); “...não poderiam nem com uma gata pelo rabo...” (p.196); “...começamos a dar o dito por não dito...” (p.197); “...assim como o hábito não faz o monge, o ceptro não faz o rei...” (p.204); “...nãoregra que não tenha a sua excepção...” (p.205); “...não esqueçamos que tudo na vida é relativo...” (p.206); “...ela é a que deita fogo à pira, não a que deve morrer...” (p.206); “Deus dá a nuvem conforme a sede.” (p.225); “...há é que ter paciência, dar tempo ao tempo...” (p.226); “...como se costuma dizer, a fruta está muito escolhida...” (p.231); “...dêem tempo ao tempo e ele se encarrega de resolver...” (p.232); “...um rei com olhos numa terra de cegos...” (p.245); “...a experiência é realmente a mestra da vida...” (p.250); “...olhos que não vêem, coração que não sente...” (p.250); “E como uma desgraça nunca vem ...” (p.253); “...veio abaixo num sopro, como um castelo de cartas...” (p.255); “...assim é a vida, quem não tem cão caça com gato...” (p.268); “...não é na natureza que algumas vezes nem tudo se perde e algo se aproveita.” (p.273); “...com a ajuda dos santos, que sendo para baixo acodem todos...” (p.286); “O puxador da porta é a mão estendida de uma casa...” (p.289); “...o fio que nos une...” (p.290); “...é preciso esperar, dar tempo ao tempo...” (p.303)

Não posso afirmar com certeza se em todos os casos as frases aparecem por descuido, por preguiça do autor em recriar artisticamente expressões desgastadas, ou se é algo feito de forma proposital. Seja como for, por descuido ou de cabeça pensada, parece óbvio que esse é um dos recursos que garantem a popularidade da prosa do best-seller português.

sexta-feira, novembro 03, 2006

Novos links

Agora que, não sei até quando, resolvi atualizar o blog, percebi que precisava também atualizar a pobrezita seção de links. E melhor do que simplesmente pôr os links lá é ir apresentando alguns deles:

O Falastrão -- Blog de João Paulo Medeiros, meu colega de sala. Artífice em formação na arte da reportagem e, especialmente, da crônica, Jp tem sido saudado por todos nós como o sucessor ao trono de Carlos Heitor Cony. Em seu favor
: Ao contrário de sua personalidade bronca, seus textos são extremamente sensíveis e tocantes. Contra: O espaço que ele abre para novos talentos, às vezes, é enfadonho.

Disneyworld Blues -- Blog de Cristhiano Aguiar, meu amigo intelectual. Um aglomerado das coisas que ele lê, assiste, e lhe passam na cabeça.
Em seu favor: O blog é divertido e inteligente, há trechos de seus contos, links pros artigos que ele publica, e sempre me deparo com um monte de referências interessantes que eu ignorava completamente. Contra: Cristhiano é petista.

quarta-feira, novembro 01, 2006

Monergismo.com sem Apoio

Este último apelo que o Felipe Sabino postou no Monergismo — o maior site de teologia reformada do Brasil, totalmente gratuito — e a conversa que tive com ele sobre a pífia reação dos milhares de visitantes a seu pedido me fizeram lembrar de um filme que vi semanas atrás. Vou contar a história aqui e vocês vão entender:

Em Matar ou Morrer [High Noon, 1952], Gary Cooper é Will Kane, um xerife linha dura que havia enfiado Frank Miller na cadeia, um bandidão da pesada, que por sua vez o jurou de morte. No dia do seu casamento, tendo entregue seu distintivo, Kane recebe a notícia de que Miller está nas ruas novamente, e que ao meio-dia desembarca na cidade para cumprir sua promessa.

Os amigos de Kane pedem que eleembora, porque aquilo não é problema dele. Ele até vai, mas, por consciência de seu dever, dá a volta no meio do caminho e decide ficar para defender a cidade. chegando, Kane procura formar uma equipe para enfrentar o bando de Miller. Mas a covardia é lei.

O juiz de direito que havia incriminado Frank Miller faz as malas e parte sem demora. No Saloon, nenhum dos homens se propõe a ajudar. Quando vai à casa de um amigo, o sujeito se esconde e pede pra que a mulher diga que ele foi à igreja. Na igreja, ocorre um intenso debate, mas, no final todos se acovardam e Kane, mais uma vez, sai sozinho, batendo o chapéu na coxa.

Um sujeito que havia trabalhado com ele como assistente de xerife vai procurá-lo e oferece ajuda, mas, ao retornar, perto do meio-dia, que ninguém mais havia se apresentado para a empreitada, e que seriam ele e o xerife contra quatro bandidos bons de tiro. Meio sem jeito, ele pede desculpas e volta atrás.

Numa última tentativa, Kane vai até a casa do antigo xerife da cidade. Este, velho, afirma que, se for com ele enfrentar Frank Miller, vai mais atrapalhar do que ajudar. Faltam alguns minutos para que o trem chegue à cidade, e nessa hora o velho xerife diz ao Sabino, aliás, ao Kane, essas palavras, que cito de memória: "as pessoas estão dispostas a apoiar qualquer boa causa, desde que isso não lhes custe nada..."