‘Seu’ Adilson era homem já de cabelos brancos e, embora falasse pouco, me contou uma história que era totalmente outra. Dizia ter ouvido falar do paradeiro daquele homem, mas que não sabia seu nome nem onde morava, exceto que talvez estivesse trabalhando em tal lugar ali por perto mesmo, e que realmente só o porteiro da noite saberia informar melhor.
Fui ao tal lugar. A cicatriz de quem pulou de um prédio é difícil de esconder; e ele a trazia bem gravada no canto direito da testa e no olhar nervoso e desconfiado. Sem maiores dificuldades, eu havia encontrado quem procurara.
A conversa dos ascensoristas em torno daquele homem que pulou do 5º andar do Edifício Lucas, centro de Campina Grande, e não morreu era puro folclore. Fazia um ano que Marcos trabalhava ali, um estabelecimento comercial do município na forma de feira livre diária, e não só caminhava normalmente como era o segurança do local.
De jaqueta cinza, cacetete na mão, Marcos não sabia se expressar muito bem nem conseguia me explicar direito o por quê de sua atitude. Enumerou razões sem conectá-las umas às outras, disse que a perda do emprego, a falta de perspectiva, a gravidez da mulher, as drogas que usava, e que talvez juntando tudo se explicasse por que ele tentou a morte, há cerca de um ano e meio.
Escolhera o Lucas pela facilidade de transitar e alcançar uma janela; a laje do chamado andar vazado, antes salão de festas, é o primeiro piso que se alcança de qualquer dos treze andares que se pule. Marcos sabia das outras duas pessoas que haviam pulado de lá para a morte este ano, uma deles no início deste mês inclusive, e, estalando o dedo, falava que muitos casos ocorreram antes do seu.
Essas histórias eu tinha ouvido com detalhes, não fazia meia hora, da boca das ditas testemunhas oculares, os ascensoristas do Lucas. Contaram-me de um que subiu as escadas em disparada ao último andar, totalmente atordoado, e, já no parapeito, ameaçando levar consigo quem o detivesse. Contaram de uma mulher que, noutra época, fez igual ameaça mas acabou sendo impedida tanto de pular quanto de levar alguém consigo. Contaram de como era difícil controlar quem subia e para onde ia, e de como julgavam absolutamente impossível dissuadir um suicida.
Enquanto relembrava essas histórias e, num gesto autômato, anotava no bloco de notas as frases esparsas que Marcos proferia, passava em minha mente soluções malucas para resolver o problema do condomínio, como uma cama elástica em cima do andar vazado, e outros disparates afins. Logo percebi que o problema não era do condomínio. Assim como o suicídio por enforcamento não é problema das cordas. Aliás, pelo que disse a síndica, e confirmaram os porteiros, nunca nenhum dos que se atiraram de lá morava no prédio.
Com a mente de volta à feira, encostado numa banca de verduras vazia, era com pesar que eu ouvia a triste história de Marcos, de como sua mulher o abandonara, de como perdera seu emprego de policial, de como se envolvera com drogas, de como foi declinando e declinando, até cair, no sentido mais literal possível; e de como sobrevivera à queda, sem saber ainda a quem atribuir o milagre. Falou-me que estava lendo a Bíblia, e aproveitei pra conversar sobre uma queda muito maior que a dele: a de Adão. Não sei se me deu ouvidos.
Era extremamente admirável ver o esforço de um ser humano por reconstruir a existência que tentou expurgar no piso de uma laje. Quando os olhos marejaram, Marcos despistou comentando um filme que assistiu no dia anterior em que “um cara pulou de um prédio.” Eu não vi o filme, respondi. “O viado morreu na hora,” disse rindo, talvez tentando, mais do que esconder o choro, encontrar consolo em uma história pior que a sua, sem importar se fictícia.