quarta-feira, agosto 17, 2005

De Lefort a Marilena: Que Democracia?

Muito antes de desmascararem a patacoada de O que é Ideologia? e de o professor Gonçalo Armijo Palácios publicar a série Convite à Falsificação, em que expôs algumas das incongruências do inaceitável Convite à Filosofia, de Marilena Chauí, José Guilherme Merquior já havia apontado, em seu estilo brilhantemente claro, e a um só tempo polido e incisivo, as incoerências no raciocínio de nossa "filósofa", resultantes de seu apego atávico às sutilezas da utopia marxista; bem como a técnica de citar o pensamento de um outro autor sem as aspas -- a qual comumente chamamos plágio.
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por José Guilherme Merquior
In: O Argumento Liberal, p.135-141.

“Todo sistema totalitário pretende ignorar o conflito e (...) impor a todas as atividades sociais um denominador comum. Não se pode dizer que a democracia se caracteriza, ao contrario, por sua intenção de enfrentar a heterogeneidade dos valores, dos comportamentos e dos desejos, e de fazer dos conflitos um motor de crescimento?”
Claude Lefort


“Há na democracia um apelo interno ao socialismo.” Com essa convicção, Marilena Chauí dedica dois ensaios (e dois terços) de seu brilhante e recém- publicado Cultura e Democracia (Ed. Moderna, S. Paulo) ao que há pouco discutíamos, em debate com Carlos Nelson Coutinho*: à tentativa de revalorização do princípio democrático no ensaísmo marxista ou marxizante brasileiro. Mas enquanto Carlos Nelson procura conciliar sua louvável defesa do valor universal da democracia com uma apologia do pensamento político de Lênin, Marilena nem perde tempo com tarefa tão ingrata: seu democratismo marxizante já passa tranqüilamente por uma resoluta rejeição de Lênin. É que o guru de Marilena não é nenhum marxista ocidental leninista, tipo Lukács ou Gramsci, e sim a voz mais interessante do gauchisme: Claude Lefort. Na realidade, embora o cite expressamente um par de vezes, Marilena deve a Lefort bem mais do que seu texto reconhece (o que talvez se explique pela destinação originariamente oral desses ensaios), já que seu próprio fraseado se acha, em vários trechos, diretamente calcado na obra do teórico francês, a começar pelos Eléments d’une Critique de la Bureaucratie (1971).

A diferença entre Lênin e Gramsci (cuja teoria política é perfilhada por Carlos Nelson) é de grau — mas a diferença entre Lênin e Lefort é de natureza. A divergência entre Gramsci e Lênin se resume numa questão de tática. Gira em torno do reconhecimento, pelo italiano, da força da sociedade civil no Ocidente, e, portanto, da necessidade de fazer preceder a tomada revolucionária do poder de uma ampla hegemonia sociocultural das massas. Já com Lefort, que se propõe radicalizar a crítica de Rosa Luxemburgo ao bolchevismo, a divergência é estratégica: não se refere ao problema da conquista do poder, mas à própria substância do poder revolucionário, enquanto centralismo despótico e elitista. Ex-trotskista, Lefort conservou do autor de A Revolução Traída um horror. à dominação do partido degradado em burocracia absolutista. Amigo íntimo de Merleau-Ponty (1908-1961), herdou desse filósofo, grande adversário de Sartre nos anos 50, a consciência da ambigüidade radical de todo estar no mundo humano, ambigüidade que torna utópico — e necessariamente violento — todo e qualquer anelo de agir em nome de uma pretensa transparência do sujeito, quer individual, quer — como o partido revolucionário — coletivo. Se a história, ação humana, não é essencialmente transparente, então nenhuma força que pretenda encarná-la poderá aspirar com legitimidade à direção global da sociedade. A idéia de uma vanguarda no poder – o modelo leninista – perde com isso sua sustentação filosófica. A influência de Merleau-Ponty reforçou a ruptura de Lefort com o sebastianismo trotskista, que ainda se alimentava da ilusão de salvar o partido do despotismo burocrático.


Para o outro maitre-à-penser do gauchisme, Cornelius Castoriadis, companheiro de Lefort no grupo Socialismo ou Barbárie, o marxismo libertário de Lefort padece de um defeito: não satisfaz a um mínimo de requisitos organizacionais do combate revolucionário. Mas é que Cas­toriadis quer a todo custo salvar o princípio da revolução — mesmo ao preço do abandono do marxismo. Lefort é muito menos lírico, e muito mais ambíguo. Para quem não se considere comprometido com o mito da revolução, porém, a verdadeira lacuna de seu pensamento é outra. Em Lefort, a vontade de escapar ao leninismo sem cair no liberalismo desemboca numa análise da sociedade contemporânea que pode ser politicamente relevante (crítica do burocratismo), mas é sociologicamente vaga (a sociedade burocrática é algo histórica e institucionalmente muito indeterminado). Além disso, do lado construtivo, esse gauchisme não oferece mais do que um libertarismo difuso, quase completamente destituído de viabilidade prática. Um protesto romântico, sem projeto político-social.

Valeria a pena indagar até que ponto essa carga romântica do libertarismo lefortiano convida ao flerte com teorias do conhecimento igualmente pouco racionais. Marilena coloca seu livro sob a égide das delirantes invectivas da escola de Frankfurt contra “as pressões sociais que a ciência (sic) criou” (Max Horkheimer); e prefacia sua teorização política pela adoção de uma antítese, entre o “conhecer” e o “pensar”, cujo talhe heideggeriano cheira e soa ao mais sovado irracionalismo neo-romântico. Nem é difícil associar a essa atmosfera irracionalista o seu hábito de denunciar as preocupações de racionalidade econômica como coisa meramente alienada, desumanizante e repressiva. Decepciona ver uma autora tão sofistica incidir nesse cacoete humanístico, que, a pretexto de repudiar certas falácias da tecnocracia, termina negligenciando infantilmente uma das maiores obrigações da reflexão social em nosso tempo: a absoluta necessidade de incorporar a lógica do econômico — relativa, mas, até certo ponto, irredutível — ao discurso que se queira objetivo sobre poder e sociedade.

Como era de esperar, o marxismo antiburocrático extrema o gosto marxiano pela demonização do estado. Marilena revela alto apreço pelo desbragado filosofismo da nova escolástica neomarxista, especialmente alemã, no capítulo da teoria do estado; mas não demonstra igual interesse pela análise empírica do fenômeno da estatificação, seja historiográfica (de um Stein Rokkan a um Char­les Tilly, por exemplo), seja sociológica. A despeito de seu breve elogio à crítica de Miguel Reale à miopia antiestatista de muitos liberais, nossa pensadora se mantém no essencial, fiel à dogmática estadofobia marxista, ao mito do estado como eterno instrumento de opressão de classe. Daí seu pronunciamento, em nome do “apelo socialista” da idéia democrática, contra a perspectiva de um movimento social-democrático no Brasil, por ela considerado “etapista, legalista, parlamentarista, estatista, nacionalista e aliancista”. À soma, para muitos quase impecável, desses atributos, ela contrapõe o ideal de um radicalismo obreiro (p. 206-7) de prática “antiestatal” (p. 131). O motivo desse puritanismo antialiancista é uma velha melodia marxista: o ódio supersticioso ao reformismo, o apego fundamentalista ao Desejo de Revolução. Aqui, visivelmente, Marilena se separa da ótica bem mais desencantada — ou bem mais lúcida — de Lefort.

E, contudo, o decisivo é saber se a posição de Marilena supera os equívocos (que Lefort procura evitar) do ataque marxista contra a democracia liberal. Nesse ponto, curiosamente, a autora oscila entre duas direções. Por um lado, ao longo de seu justo e eloqüente inventário das carências e iniqüidades que compõem nosso colosso de privilégio e autoritarismo (p. 159-61), ela não advoga, a rigor, nada que não seja perfeitamente integrável numa democracia de índole social-liberal, nada que não possa ser oferecido pela combinação do estado de direito com o estado-previdência. Por outro lado, no plano teórico, endossa a vulgata marxista, decretando que “a liberdade é impossível numa democracia liberal”, já que, enquanto houver uma classe dominada, as relações sociais, da produção à ideologia. servem de obstáculo permanente à autodeterminação do homem.

Tomara que essa defasagem entre teoria utópico-radical e programa político razoável e, que me perdoem os “radicais” o palavrão, sensata e humanitariamente reformista possa perdurar na prosa do nosso marxismo de cátedra e salão. Afinal de contas, foi na base de uma dissonância análoga que, na Belle Époque européia, a social-democracia germânica realizou a educação política dos trabalhadores alemães. A audácia de Bernstein foi apenas ter ousado ser revisionista também na teoria; na prática, como é sabido, todos os ortodoxos, Kautsky à frente, foram indecentemente reformistas.

Mas o que precisa ser logo contestado, nesse verbalismo “radical”, é a cansativa mania de reduzir a imagem liberal da democracia ao nível de uma simples visão “burguesa”. Visão burguesa que, alega-se, “politiza” o universo democrático para esvaziá-lo de suas potencialidades sociais... Infelizmente para quem teima em sustentar esse ponto de vista, a realidade histórica tem sido bem diversa. A democracia liberal não foi nenhuma dádiva-engodo da burguesia; foi uma conquista popular, forçando, por etapas, o alargamento universalista da cidadania e das liberdades, até o atual desdobramento dos direitos civis e políticos em vários direitos sociais. E, para tanto, a democracia – o regime da liberdade na igualdade, ou melhor, numa dinâmica de igualização – operou por meio da ativação de um mecanismo – o mercado político – a que socializantes pós-liberais como C. B. Macpherson, citado simpaticamente por Marilena, torcem seu delicado nariz “humanista”. Como se o primeiro cuidado de todos os autoritarismos (a começar pelos nossos, na convincente análise de Bolívar Lamounier) não tivesse sido sempre, justamente, impedir esse mercado político de funcionar.

Marilena condena saudavelmente o “reducionismo classista” do marxismo crasso. Mas o que ela tem em mente é apenas o economicismo, o “formalismo socialista”, para o qual socializar é tão-somente coletivizar os meios de produção. Assim, quando um Norberto Bobbio aponta a dificuldade de fazer atuar a democracia, em sua plenitude, numa sociedade como a contemporânea, dominada pela crença inevitável de grandes burocracias e de uma medida também inevitável de gestão tecnocrática, paradoxalmente derivadas da pressão das próprias massas, ansiosas por progresso e segurança, tudo o que nossa teórica tem a comentar é que esses males e paradoxos não procedem do próprio jogo político-social da democracia representativa, e sim da libido dominandi do capitalismo moderno. . . Convenhamos que é ficar muito, muito perto de uma visão conspiratorial do processo histórico, sem ter sequer o trabalho de tentar fundamentá-la com algo mais que a mera invocação ritual do demônio disfarçado de formação social. Num dos melhores momentos de seu livro, ao expor a política de seu – e meu – querido Espinosa, Marilena lembra que, para a teoria política moderna, o eixo do bom regime não é mais, ou só, a motivação os governantes, mas a excelência das instituições e, em particular, sua aptidão a garantir a segurança dos cidadãos por meio de mecanismos que impeçam a monopolização da autoridade por qualquer tipo de poder social. Pois bem, a pergunta que deve ser claramente respondida é: alguém conhece algum regime mais capaz de concretizar essa garantia (e, através dela, expandir liberdades reais) do que a tensa, imperfeita e precária democracia liberal? Se o filosofismo “radical” o conhece, ainda não nos fez a graça de demonstrá-lo; e, se não conhece, temos o direito de pedir à sua retórica acusatória que se dedique a avaliar um pouco menos superficialmente o sentido e função das liberdades democráticas.


* Ver o ensaio “Marxismo e democracia” no meu livro As Idéias e as Formas (Rio, 1981), p. 232-40. O presente ensaio foi primeiro publicado, sob outro título, no Jornal do Brasil de 2.5.81.


Um comentário:

Anônimo disse...

Cláudio,
meus parabéns! Seu texto é muito bem escrito. Fico orgulhosa de ver que jovens de sua idade possuem a coragem e a aleitura que vc demonstra. Odeio plágio. Combato-o na academia com unhas e dentes. Marilena Chauí é uma vergonha nacional & um exemplo muito maligno para os jovens estudantes, não apenas por sua falta de talento filosófico, mas de idoneidade acadêmica.