Muito antes de desmascararem a patacoada de O que é Ideologia? e de o professor Gonçalo Armijo Palácios publicar a série Convite à Falsificação, em que expôs algumas das incongruências do inaceitável Convite à Filosofia, de Marilena Chauí, José Guilherme Merquior já havia apontado, em seu estilo brilhantemente claro, e a um só tempo polido e incisivo, as incoerências no raciocínio de nossa "filósofa", resultantes de seu apego atávico às sutilezas da utopia marxista; bem como a técnica de citar o pensamento de um outro autor sem as aspas -- a qual comumente chamamos plágio.
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por José Guilherme Merquior
In: O Argumento Liberal, p.135-141.
In: O Argumento Liberal, p.135-141.
“Todo sistema totalitário pretende ignorar o conflito e (...) impor a todas as atividades sociais um denominador comum. Não se pode dizer que a democracia se caracteriza, ao contrario, por sua intenção de enfrentar a heterogeneidade dos valores, dos comportamentos e dos desejos, e de fazer dos conflitos um motor de crescimento?”
Claude Lefort
A diferença entre Lênin e Gramsci (cuja teoria política é perfilhada por Carlos Nelson) é de grau — mas a diferença entre Lênin e Lefort é de natureza. A divergência entre Gramsci e Lênin se resume numa questão de tática. Gira em torno do reconhecimento, pelo italiano, da força da sociedade civil no Ocidente, e, portanto, da necessidade de fazer preceder a tomada revolucionária do poder de uma ampla hegemonia sociocultural das massas. Já com Lefort, que se propõe radicalizar a crítica de Rosa Luxemburgo ao bolchevismo, a divergência é estratégica: não se refere ao problema da conquista do poder, mas à própria substância do poder revolucionário, enquanto centralismo despótico e elitista. Ex-trotskista, Lefort conservou do autor de A Revolução Traída um horror. à dominação do partido degradado em burocracia absolutista. Amigo íntimo de Merleau-Ponty (1908-1961), herdou desse filósofo, grande adversário de Sartre nos anos 50, a consciência da ambigüidade radical de todo estar no mundo humano, ambigüidade que torna utópico — e necessariamente violento — todo e qualquer anelo de agir em nome de uma pretensa transparência do sujeito, quer individual, quer — como o partido revolucionário — coletivo. Se a história, ação humana, não é essencialmente transparente, então nenhuma força que pretenda encarná-la poderá aspirar com legitimidade à direção global da sociedade. A idéia de uma vanguarda no poder – o modelo leninista – perde com isso sua sustentação filosófica. A influência de Merleau-Ponty reforçou a ruptura de Lefort com o sebastianismo trotskista, que ainda se alimentava da ilusão de salvar o partido do despotismo burocrático.
Para o outro maitre-à-penser do gauchisme, Cornelius Castoriadis, companheiro de Lefort no grupo Socialismo ou Barbárie, o marxismo libertário de Lefort padece de um defeito: não satisfaz a um mínimo de requisitos organizacionais do combate revolucionário. Mas é que Castoriadis quer a todo custo salvar o princípio da revolução — mesmo ao preço do abandono do marxismo. Lefort é muito menos lírico, e muito mais ambíguo. Para quem não se considere comprometido com o mito da revolução, porém, a verdadeira lacuna de seu pensamento é outra. Em Lefort, a vontade de escapar ao leninismo sem cair no liberalismo desemboca numa análise da sociedade contemporânea que pode ser politicamente relevante (crítica do burocratismo), mas é sociologicamente vaga (a sociedade burocrática é algo histórica e institucionalmente muito indeterminado). Além disso, do lado construtivo, esse gauchisme não oferece mais do que um libertarismo difuso, quase completamente destituído de viabilidade prática. Um protesto romântico, sem projeto político-social.
Valeria a pena indagar até que ponto essa carga romântica do libertarismo lefortiano convida ao flerte com teorias do conhecimento igualmente pouco racionais. Marilena coloca seu livro sob a égide das delirantes invectivas da escola de Frankfurt contra “as pressões sociais que a ciência (sic) criou” (Max Horkheimer); e prefacia sua teorização política pela adoção de uma antítese, entre o “conhecer” e o “pensar”, cujo talhe heideggeriano cheira e soa ao mais sovado irracionalismo neo-romântico. Nem é difícil associar a essa atmosfera irracionalista o seu hábito de denunciar as preocupações de racionalidade econômica como coisa meramente alienada, desumanizante e repressiva. Decepciona ver uma autora tão sofistica incidir nesse cacoete humanístico, que, a pretexto de repudiar certas falácias da tecnocracia, termina negligenciando infantilmente uma das maiores obrigações da reflexão social em nosso tempo: a absoluta necessidade de incorporar a lógica do econômico — relativa, mas, até certo ponto, irredutível — ao discurso que se queira objetivo sobre poder e sociedade.
Como era de esperar, o marxismo antiburocrático extrema o gosto marxiano pela demonização do estado. Marilena revela alto apreço pelo desbragado filosofismo da nova escolástica neomarxista, especialmente alemã, no capítulo da teoria do estado; mas não demonstra igual interesse pela análise empírica do fenômeno da estatificação, seja historiográfica (de um Stein Rokkan a um Charles Tilly, por exemplo), seja sociológica. A despeito de seu breve elogio à crítica de Miguel Reale à miopia antiestatista de muitos liberais, nossa pensadora se mantém no essencial, fiel à dogmática estadofobia marxista, ao mito do estado como eterno instrumento de opressão de classe. Daí seu pronunciamento, em nome do “apelo socialista” da idéia democrática, contra a perspectiva de um movimento social-democrático no Brasil, por ela considerado “etapista, legalista, parlamentarista, estatista, nacionalista e aliancista”. À soma, para muitos quase impecável, desses atributos, ela contrapõe o ideal de um radicalismo obreiro (p. 206-7) de prática “antiestatal” (p. 131). O motivo desse puritanismo antialiancista é uma velha melodia marxista: o ódio supersticioso ao reformismo, o apego fundamentalista ao Desejo de Revolução. Aqui, visivelmente, Marilena se separa da ótica bem mais desencantada — ou bem mais lúcida — de Lefort.
E, contudo, o decisivo é saber se a posição de Marilena supera os equívocos (que Lefort procura evitar) do ataque marxista contra a democracia liberal. Nesse ponto, curiosamente, a autora oscila entre duas direções. Por um lado, ao longo de seu justo e eloqüente inventário das carências e iniqüidades que compõem nosso colosso de privilégio e autoritarismo (p. 159-61), ela não advoga, a rigor, nada que não seja perfeitamente integrável numa democracia de índole social-liberal, nada que não possa ser oferecido pela combinação do estado de direito com o estado-previdência. Por outro lado, no plano teórico, endossa a vulgata marxista, decretando que “a liberdade é impossível numa democracia liberal”, já que, enquanto houver uma classe dominada, as relações sociais, da produção à ideologia. servem de obstáculo permanente à autodeterminação do homem.
Tomara que essa defasagem entre teoria utópico-radical e programa político razoável e, que me perdoem os “radicais” o palavrão, sensata e humanitariamente reformista possa perdurar na prosa do nosso marxismo de cátedra e salão. Afinal de contas, foi na base de uma dissonância análoga que, na Belle Époque européia, a social-democracia germânica realizou a educação política dos trabalhadores alemães. A audácia de Bernstein foi apenas ter ousado ser revisionista também na teoria; na prática, como é sabido, todos os ortodoxos, Kautsky à frente, foram indecentemente reformistas.
Mas o que precisa ser logo contestado, nesse verbalismo “radical”, é a cansativa mania de reduzir a imagem liberal da democracia ao nível de uma simples visão “burguesa”. Visão burguesa que, alega-se, “politiza” o universo democrático para esvaziá-lo de suas potencialidades sociais... Infelizmente para quem teima em sustentar esse ponto de vista, a realidade histórica tem sido bem diversa. A democracia liberal não foi nenhuma dádiva-engodo da burguesia; foi uma conquista popular, forçando, por etapas, o alargamento universalista da cidadania e das liberdades, até o atual desdobramento dos direitos civis e políticos em vários direitos sociais. E, para tanto, a democracia – o regime da liberdade na igualdade, ou melhor, numa dinâmica de igualização – operou por meio da ativação de um mecanismo – o mercado político – a que socializantes pós-liberais como C. B. Macpherson, citado simpaticamente por Marilena, torcem seu delicado nariz “humanista”. Como se o primeiro cuidado de todos os autoritarismos (a começar pelos nossos, na convincente análise de Bolívar Lamounier) não tivesse sido sempre, justamente, impedir esse mercado político de funcionar.
Marilena condena saudavelmente o “reducionismo classista” do marxismo crasso. Mas o que ela tem em mente é apenas o economicismo, o “formalismo socialista”, para o qual socializar é tão-somente coletivizar os meios de produção. Assim, quando um Norberto Bobbio aponta a dificuldade de fazer atuar a democracia, em sua plenitude, numa sociedade como a contemporânea, dominada pela crença inevitável de grandes burocracias e de uma medida também inevitável de gestão tecnocrática, paradoxalmente derivadas da pressão das próprias massas, ansiosas por progresso e segurança, tudo o que nossa teórica tem a comentar é que esses males e paradoxos não procedem do próprio jogo político-social da democracia representativa, e sim da libido dominandi do capitalismo moderno. . . Convenhamos que é ficar muito, muito perto de uma visão conspiratorial do processo histórico, sem ter sequer o trabalho de tentar fundamentá-la com algo mais que a mera invocação ritual do demônio disfarçado de formação social. Num dos melhores momentos de seu livro, ao expor a política de seu – e meu – querido Espinosa, Marilena lembra que, para a teoria política moderna, o eixo do bom regime não é mais, ou só, a motivação os governantes, mas a excelência das instituições e, em particular, sua aptidão a garantir a segurança dos cidadãos por meio de mecanismos que impeçam a monopolização da autoridade por qualquer tipo de poder social. Pois bem, a pergunta que deve ser claramente respondida é: alguém conhece algum regime mais capaz de concretizar essa garantia (e, através dela, expandir liberdades reais) do que a tensa, imperfeita e precária democracia liberal? Se o filosofismo “radical” o conhece, ainda não nos fez a graça de demonstrá-lo; e, se não conhece, temos o direito de pedir à sua retórica acusatória que se dedique a avaliar um pouco menos superficialmente o sentido e função das liberdades democráticas.
* Ver o ensaio “Marxismo e democracia” no meu livro As Idéias e as Formas (Rio, 1981), p. 232-40. O presente ensaio foi primeiro publicado, sob outro título, no Jornal do Brasil de 2.5.81.
Um comentário:
Cláudio,
meus parabéns! Seu texto é muito bem escrito. Fico orgulhosa de ver que jovens de sua idade possuem a coragem e a aleitura que vc demonstra. Odeio plágio. Combato-o na academia com unhas e dentes. Marilena Chauí é uma vergonha nacional & um exemplo muito maligno para os jovens estudantes, não apenas por sua falta de talento filosófico, mas de idoneidade acadêmica.
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