quarta-feira, abril 05, 2006

A mim não diz nada, mas...*
por Thomas Mann


...Concluíra o ginásio com facilidade, com apenas duas ou três horas de aula particular por dia, passara nos exames finais, mas não seguira nenhum curso voltado às ciências; em vez disso, dedicara-se às artes plásticas, primeiro à escultura, depois à pintura, e quando aluna revelara um estilo altamente intelectualizado que desprezava a mera imitação da natureza, transfigurando as impressões sensoriais em dados rigorosamente mentais, abstratos, simbólicos e freqüentemente matemático-cubistas. A senhora Von Tümmler observava com respeito aflito os quadros da filha, em que o altamente elaborado se ligava ao primitivo, o decorativo ao melancólico, um refinadíssimo talento para a combinação de cores ao ascetismo formal.

"Notável, sem dúvida, notável, meu bem", dizia ela. "O professor Zumsteg vai apreciar. Foi elequem consolidou em você esse jeito de pintar, e você tem olho e entendimento para isso. É preciso ter entendimento e olho para isso. Que nome você lhe atribuiu?”

Árvores ao vento do entardecer.”

Isso sempre oferece uma indicação sobre suas intenções. Esses cones e círculos em fundo cinza-amarelado representarão as árvores, e aquela linha singluar, que se abre em espiral, será o vento do entardecer? Interessante, Anna, interessante. Mas, santo Deus, filha, a minha natureza, o que vocês fazem com ela! Se ao menos uma única vez você oferecesse com sua arte algo para as emoções, se pintasse algo para o coração, uma bela natureza-morta com flores, um ramo de lilases frescos, tão naturais que seria possível imaginar o perfume junto do vaso, algumas figuras delicadas de porcelana de Meißener, um cavalheiro que beija a mão de uma dama, e tudo isso refletido na superfície polida da mesa..."

“Pare, pare, mamãe! Você tem uma fantasia prodigiosa. Não se pode mais pintar assim!”

“Anna, você não vai querer me convencer de que não seria capaz de pintar nada assim, que desse prazer ao coração. Com todo esse seu talento."

"Você não está entendendo, mamãe. Não se trata de ser capaz. É que não se faz mais isso. A época em que estamos e a situação da arte não o permitem mais."

Pior para nossa época e para a situação da arte! Não, perdoe-me, minha filha, não era o que eu queria dizer. Se é a vida em evolução que o impede, nãolugar para queixas. Ao contrário, ruim seria ficar para trás. Entendo isso perfeitamente. E também entendo que é preciso genialidade para imaginar uma linha tão significativa como essa. A mim não diz nada, mas vejo nitidamente que é muito significativa.”

(*Título adaptado. Trecho de A Enganada. São Paulo: Editora Mandarim, 2001; Tradução: Lya Luft. 2ª Edição. pp. 94-95.) Tela de Kandinsky.